“Esta história é uma ficção. Qualquer semelhança com a realidade...”

Você já viu este tipo de anúncio escrito, no início de filmes e livros, de milhares de formas diferentes, desde as mais óbvias (“Este filme é baseado em fatos reais”) até as dezenas de versões supostamente engraçadas, paródias de todos os tipos. (“Este baseado é fato em filmes reais”.) O sentido prático do aviso é dramatúrgico, moral e também jurídico.

Dramatúrgico, porque ao imaginar que aquilo que é narrado aconteceu de fato, o leitor estabelece com a história uma relação diferente da que experimenta ao ler o que sabe ser uma fantasia, produto da imaginação de alguém. Lê-se o jornal com um espírito, com outro, um poema.

Moral, porque o leitor nem sempre gosta de ser enganado. O leitor está pronto a embarcar na “suspensão da descrença”, imaginar que alienígenas ou antigos romanos falem inglês, ou que o espaço escasso de um palco possa abrigar batalhas e tempestades, mas não aceita que uma narrativa afirme que foram sete as esposas de Henrique Oitavo, sabendo ele que eram seis.

Jurídico, para evitar processos de pessoas e instituições de verdade, descontentes com a versão dos fatos que a história traz. Os herdeiros de Henrique Oitavo, por exemplo, podem não aceitar que o autor lhe atribua uma esposa a mais.

Eu imaginava que o primeiro autor a usar este tipo de aviso tivesse sido o inglês Daniel Defoe. Ele era jornalista, nunca tinha escrito um livro de ficção, até lançar, em 1719, “A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoé, de York, Marinheiro: que viveu vinte e oito anos sozinho numa ilha desabitada na costa da América, perto da foz do Grande Rio de Oroonoque, tendo sido lançado em terra por naufrágio, onde todos os homens pereceram, exceto ele. Com um relato de como foi finalmente tão estranhamente libertado por piratas. Escrita por ele mesmo.” Era tudo mentira, e o livro não trazia o nome do verdadeiro autor.

A narrativa de Defoe é “livremente inspirada” na história de Alexander Selkirk, um marinheiro escocês que ficou quatro anos sozinho numa ilha sul americana, mas ficou porque quis e pelo tempo que quis. O naufrágio e o resgate, assim como Sexta-Feira, os piratas e todo o resto, são invenções de Defoe. O livro foi um grande sucesso, mas alguns leitores ficaram furiosos aos descobrir que foram enganados. A segunda edição do livro trazia o nome do autor e a informação: “Esta história é uma ficção. Qualquer semelhança…”

Descobri recentemente que o tal aviso é muito mais antigo. Luciano de Samósata foi um escritor satírico que nasceu no ano de 125 d.C. em Samósata, província romana da Síria, e morreu provavelmente em Alexandria, no Egito, em 180 d.C. Luciano era possivelmente semita, escreveu em grego e, com seus diálogos satíricos, onde ridicularizava relatos fantasiosos e superstições, teve grande influência sobre Shakespeare, Erasmo, Rabelais, Swift, Voltaire, Machado de Assis, e também inspirou o Pinoquio, de Carlo Collodi.

Luciano deixou mais de 80 obras (dele ou a ele atribuídas) e a mais importante tem o título irônico de “Uma história verdadeira”. Trata-se da primeira história de ficção científica que se tem notícia. Luciano satiriza Homero e seus seres imaginários e todos os relatos de viagens fantásticas. Narrando suas aventuras em primeira pessoa, Luciano conta sua viagem à lua, seus encontros com aranhas gigantes e seres extra-terrestres, e descreve o tempo que passou, com seu navio, no interior de uma baleia do tamanho de uma cidade.

No começo de sua narrativa, Luciano avisa:

“Voltei-me para a mentira, em muito mais honesta que as dos demais, pois ao menos nisso direi a verdade: ao afirmar que minto. (…) Escrevo sobre assuntos que não vi nem sofri, nem ouvi relatos de outros, que não existem, nem são possíveis de ter um começo. Que ninguém, portanto, em qualquer caso, dê qualquer crédito a eles.”

Dado o aviso, Luciano passa a contar suas aventuras inventadas, mas, a certa altura, ao descrever os olhos removíveis dos habitantes da lua, diz que hesita em falar “temendo que alguém julgue que eu minto, por causa do que há de incrível na história”.

Ao afirmar que mente, ao afirmar que diz a verdade ao dizer que mente e, ainda assim, dizer que teme que alguém julgue que ele mente, Luciano de Samósata pode ser considerado o fundador de uma tradição: a dos mentirosos profissionais, os autores de ficção. Luciano sabia que toda história é uma mentira, sempre baseada em fatos reais.

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Para saber mais:
https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Literature/TrueHistory

Lucia Sano. Das Narrativas Verdadeiras, de Luciano de Samósata: Tradução, Notas e Estudo
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-19012009-160813/publico/LUCIA_SANO.pdf

Luciano de Samósata, The true Story:
https://www.gutenberg.org/files/45858/45858-h/45858-h.htm