[Ismael Caneppele e Eduardo Cardoso em O MERCADO DE NOTÍCIAS. Foto de Fábio Rebelo]
NA ARQUEOLOGIA DAS FAKE NEWS
Por Rodrigo Fonseca
Correio da Manhã (Rio de Janeiro), 21/08/2025 | 00:01
Até sábado, quem clicar https://festivaldecinemadegramado.com/mostra-acessivel/ poderá ver, a custo zero, no aconchego do lar, “O Mercado de Notícias” (2014), de Jorge Furtado, o primeiro documentário brasileiro a levar às salas de cinema o conflito de nosso jornalismo contra as fake news. São assim chamadas as falácias que, espalhadas (sobretudo) por grupos de whatsapp elegeram um falso messias faz pouco tempo.
Documentário sobre mídia e democracia, incluindo uma breve história da imprensa desde o seu surgimento, no século 17, até hoje, “Mercado de Notícias” é ilustrada pelo humor da peça “O Mercado de Notícias”, escrita pelo dramaturgo inglês Ben Jonson em 1625, sobre os primórdios do jornalismo. Trechos da encenação da peça são intercalados com entrevistas de 13 jornalistas brasileiros comentando temas da prática jornalística e casos recentes da história política brasileira, onde a imprensa tem papel de grande destaque.
JORGE FURTADO: ‘QUASE TODOS OS ALGORITMOS SÃO UM PROBLEMA’
Jorge Furtado fez História nas veredas da não ficção, 35 anos atrás, ao conquistar o Prêmio do Júri da Berlinale, na Alemanha, com “Ilha das Flores”, considerado o maior curta-metragem do país, de todos os tempos, em enquetes da crítica nacional. Foi um dos títulos, em formato pílula, que asseguraram à curadoria do Festival Gramado prestígio em todo o território brasileiro no passado.
Furtado foi uma usina de curtas geniais entre os anos 1980 e 1990, antes de passar para a televisão (como roteirista) e antes de se lançar nos longas-metragens, com joias como “Saneamento Básico” (2007) e “O Homem Que Copiava” (2003). A maratona gramadense sempre está no radar dele e de sua produtora, a Casa de Cinema de Porto Alegre. Não por acaso, ele ganhou um troféu honorário na cidade em 2024, o Eduardo Abelin. Este ano, a presença de seu ensaio (à moda Balzac) sobre manchetes e apurações sérias incendeia no Rio Grande do Sul uma reflexão sobre artimanhas da mídia.
O termo “Burrice Artificial”, cunhado pelo diretor numa recente entrevista ao site luso C7nema, brinca com algoritmos e a IA. É esse o papo que ele trava com o Correio da Manhã a seguir, relembrando o tempo de escassez da produção nacional, na Era Collor, antecipando detalhes de seu novo filme, em finalização, chamado “Muito Prazer”. Com a palavra… Jorge Furtado:
O que “Mercado de Notícias” te propiciou como aprendizado no trânsito pelas ferramentas documentais, feito três décadas depois de “Ilha das Flores”?
Jorge Furtado: “O Mercado de Notícias” é um filme de que eu me orgulho muito de ter feito, por ter entrevistado grandes jornalistas e por ter trazido o pensamento (em forma de peça) do (dramaturgo) Ben Jonson à tona naquele momento. Engraçado que esse é um documentário sobre fake news, mas não fala nessa expressão, pois ela só surgiu no ano seguinte. Então o filme estava falando das “notícias falsas”, que era como a gente chamava essas mentiras até então. Eu percebi, naquele momento de explosão da internet, das redes sociais, que jornalistas profissionais seriam cada vez mais necessários. A batalha dessa turma é uma luta difícil que continua sendo lutada. A luta da boa informação… da informação profissional… contra a mentira é árdua. Agora, com a inteligência artificial mentindo em ritmo astronômico, a gente cada vez mais vai precisar do bom jornalismo. Assim sendo, o filme continua bastante atual.
Agora que “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati, voltou às telas, 30 anos depois de seu lançamento, a gênese da Retomada voltou à tona e, naquele ano zero dessa reconstrução de nosso cinema, 1995, você esteve em Gramado com “Felicidade É…” e saiu de lá premiado. O que aquele filme representou para o cinema do país, e do Rio Grande do Sul, naquela época?
Aquele foi um ano dificílimo para o cinema brasileiro. O “Felicidade É…” ganhou o prêmio de Melhor Filme Brasileiro no Festival de Gramado, no de Brasília e no de Goiânia, por um motivo muito simples: ele era o único título nacional concorrendo, porque não tinha outro. A gente resolveu, numa cooperativa de curta-metragistas, fazer um filme de episódios. A gente resolveu produzir, do jeito de que dava, para botar em Gramado. Então, foi um filme de resistência.
O que Gramado representou para o filme?
Acho que Gramado representa - e muito - a resistência do cinema brasileiro. Nosso cinema já acabou algumas vezes. Acabou com o Collor; depois, com o Inelegível (Jair Bolsonaro). Apesar disso, assim como o nosso cinema, o Festival de Gramado se reinventa. Ele se refaz, vira latino (referência do diretor ao período de quase 30 anos em que o evento tinha uma competição estrangeira), muda e continua, como o cinema brasileiro continua também. Foi muito importante para nós, naquele momento, resistir e ter um filme. “Felicidade É…” ainda é interessante, é divertido. São bons curtas reunidos.
Nos anos 1980 e na primeira metade dos 1990, o cinema gaúcho esteve na ponta da ebulição estética nacional, tendo em Gramado uma vitrine. O que houve de mais potente na produção do seu estado naquele ano e o que Gramado cumpriu de essencial para essa inflamabilidade de boas ideias da época?
O começo dos anos 1980 foi um momento de ebulição da produção de curtas no Brasil, e Gramado dava espaço para essas produções. Tinha muitos curtas bons. Eu lembro que a associação que reunia os curta-metragistas era a ABD, a Associação Brasileira de Documentaristas, porque quase todos os curtas eram documentários. No começo dos anos oitenta, houve uma virada dessa lógica, e a gente começou a produzir filmes de ficção em curta metragem. Aí teve aquilo que se chamou a Primavera do Curta, em 1986, quando “O Dia Em Que Dorival Encarou a Guarda”, “A Espera” e “Ma Che Bambina” dividiram o prêmio de melhor filme em Gramado. A partir dessa divisão do prêmio principal, a gente juntou esses filmes e fez uma mostra de curtas, o que criou uma certa moda. Foi um momento muito rico. Aliás é impossível lembrar desse momento sem lembrar o nome da (produtora) Zita Carvalhosa, nossa grande amiga, que nos deixou esse ano, e que foi fundamental na produção desses curtas e na divulgação do formato.
A Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora da qual você faz parte, segue ativa no estado… brilhando fora dele também. Como andam os projetos da empresa hoje e o que esperar(mos) de “Muito Prazer”, seu novo longa?
A Casa de Cinema, que está rumando para os 40 anos, continua produzindo muito. A gente continua fazendo cinema e televisão, em Porto Alegre, com uma grande equipe. O recente “Virgínia e Adelaide”, que foi dirigido pela Yasmin Thainá e por mim, é um filme que a gente produziu, e está chegando aos streamings agora, depois de 14 semanas nos cinemas. Agora estou acompanhando a montagem do “Muito Prazer”, que é um longa de ficção, uma comédia romântica antialgorítmica. É uma comédia que fala dos algoritmos, do ridículo que são os algoritmos quando aplicados à paixão. Quase todos os algoritmos são um problema. O filme deve estar pronto no ano que vem.