(escrito vinte anos atrás, em 01/03/2004, para a revista Dfato, da AD Comunicação, de Carazinho, a pedido da Denise Caetano; não sei se foi publicado)
“Cidade de Deus” chegou perto mas, de novo, a Academia de Hollywood preferiu ficar com o que ela já conhecia. Enfim, ainda não foi desta vez que um filme brasileiro ganhou o Oscar. E então: isso é bom ou ruim?
(A) “É péssimo, porque o preconceito do público contra o cinema brasileiro vai aumentar.”
(B) “É ruim, porque nós nunca mais vamos ter uma chance tão boa de ganhar o mais importante prêmio do cinema mundial.”
(C) “É mais ou menos, porque, por mais que a gente tenha torcido, pensando bem o cinema brasileiro ainda não merece um Oscar.”
(D) “É bom, porque o cinema brasileiro não tem nada a ver com Hollywood.”
(E) “É muito bom, porque ‘Cidade de Deus’ não seria um representante legítimo da diversidade e da inventividade do melhor cinema brasileiro, aquele que é herdeiro de Glauber e Sganzerla.”
Nenhuma das respostas está correta. Na minha opinião, claro.
O preconceito do público brasileiro contra o filme brasileiro existe, mas é uma coisa histórica e socialmente datada.
Ninguém falava nesse tipo de preconceito nos anos 70, quando o país tinha 3200 salas de cinema e os cineastas podiam escolher com que público queriam se comunicar. Alguns faziam filmes de crítica social como “Pixote”, ou com raízes literárias como “Dona Flor”, outros recorriam a gêneros mais populares como a pornochanchada ou a comédia infantil, mas a maioria encontrava o seu espaço: o Brasil chegou a produzir e lançar 100 filmes por ano, ocupando 35% do mercado interno - ou seja, de cada 100 ingressos vendidos no país, 35 eram para filmes brasileiros. Naqueles bons tempos, cada um dos 90 milhões de brasileiros ia, em média, três vezes por ano ao cinema.
Mas vieram os anos 80, a crise da dívida, a falência do Estado e da classe média, a “década perdida”. Ao mesmo tempo, o espetáculo cinema mudou: o número de salas caiu para 1400 - salas menores, todas em shopping-centers, muito poucas nas cidades menores, nenhuma nas periferias, e com ingressos três ou quatro vezes mais caros. A produção caiu para 30 filmes por ano; em seguida, no período Collor, para nenhum. Os brasileiros passaram a ir bem menos ao cinema, ou melhor: bem menos brasileiros passaram a ir ao cinema, e quase não viram mais filmes brasileiros.
O que sobrou foi o preconceito, a idéia equivocada de que “filme brasileiro sempre tem homem de cueca, palavrão e mulher tomando banho”. Como se todos os filmes brasileiros fossem pornochanchadas. (E, pensando sem preconceito, até que algumas delas eram divertidas…)
Mas tem também o preconceito contrário, e talvez ainda mais condenável porque cultivado por pessoas mais informadas: a fixação nos anos 60, no “cinema novo” de Glauber Rocha e no cinema “underground” ou “marginal” de Rogério Sganzerla. Por mais que esses dois tenham sido responsáveis por alguns dos melhores momentos do cinema brasileiro, eram apenas dois cineastas, dois estilos, uma época. Não dá pra querer que todo o cinema de um país, e de um país enorme como o nosso, siga um único modelo (ou dois), não dá pra negar que cada época tem as suas particularidades.
Quando, no governo Itamar Franco, foram timidamente retomados alguns mecanismos de financiamento e distribuição - aquilo que na época se chamou de “renascimento do cinema brasileiro” -, tratava-se de, mais uma vez, inventar a roda, começar do zero. Exatamente no período em que a tecnologia do cinema mundial estava dando um salto gigantesco (do analógico para o digital), o Brasil estava fora da atividade. Não é à-toa que, por algum tempo, nossos filmes tenham parecido tecnicamente “inferiores”. Para manter a metáfora da “caminhada”, tivemos que aprender a correr sem ainda saber engatinhar.
E aprendemos. A indicação de “Cidade de Deus” para quatro Oscars, se não servisse para mais nada, no mínimo atestaria que nossos diretores, fotógrafos, roteiristas e montadores estão sintonizados com o cinema do seu tempo.
Mais do que isso: além de ser extremamente bem realizado, “Cidade de Deus” é um dos filmes mais ousados feitos no país nos últimos anos - ao contrário do que muita gente anda dizendo. Ousado na temática, no tratamento visual, na estrutura de roteiro e sobretudo ousado por apostar num elenco de atores negros e desconhecidos que são a grande força dramática e existencial do filme. Um filme legitimamente brasileiro, sobre as misérias e esperanças de uma parte da população brasileira, e que mantém, diante disso, um olhar brasileiro, comprometido, perplexo como todos nós diante da violência de nossas cidades. Um filme tão brasileiro que foi visto, no Brasil, por mais de 3,3 milhões de pessoas, abrindo caminho para outros filmes, abrindo a cabeça do público para a diversidade, contribuindo para acabar com mais de um tipo de preconceito.
“Cidade de deus” não ganhou o Oscar? Pois é, mas já ganhou outros 27 prêmios internacionais, inclusive das associações de críticos de Nova York, Londres e Los Angeles. Mesmo que o cinema brasileiro tenha pouco a ver (nos orçamentos, na história, na capacidade industrial) com Hollywood ou com o cinema inglês. “Central do Brasil” ganhou o Festival de Berlim, e isso não torna o nosso cinema parecido com o alemão.
Mas é claro que não se deve levar a sério demais qualquer tipo de premiação. Isso é uma coisa que eu sempre digo aos meus alunos: quem quer fazer cinema pra ganhar prêmios (ou pra ficar rico e famoso, ou pra comer um monte de gente) já começou errado. Por outro lado, quem entra nesse universo tem que perceber que eventuais premiações são decorrência, acidentes do trabalho. Prêmio que se ganha é bom pra divulgar o filme, pra abrir novas possibilidades de trabalho, ponto. Prêmio que não se ganha… paciência, vamos tratar de mostrar o filme pro máximo de pessoas possível, e começar a pensar em fazer outro.
Hoje, o Brasil já voltou a produzir quase 40 filmes por ano, mas só consegue exibir 20 ou 25 nos cinemas. O índice de ocupação do mercado ainda não é o mesmo dos anos 70, mas subiu de 0% em 1992 para 8% em 2002, e saltou excepcionalmente para 22% em 2003. Os brasileiros (ou pelo menos aqueles que podem pagar um ingresso e um estacionamento num de nossos luxuosos shopping-centers) estão voltando a ver filmes brasileiros, sem preconceitos, ou quase. O resto é conseqüência da nossa histórica desigualdade, a maior do mundo, que gera monstros como Zé Pequeno e dignas testemunhas como Buscapé. Isso o cinema não pode mudar - só apontar, chamar atenção, lembrar que existe.
Pra quem não sabe, Zé Pequeno e Buscapé são personagens de “Cidade de Deus”. Apesar dos Oscars que não vieram, o filme deve voltar a cartaz, no shopping mais próximo, ou em qualquer videolocadora. Se não é o “teu tipo” de filme, tem muito mais cinema brasileiro por aí, variado, diversificado e com muita coisa pra te dizer - sobre a tua vida, sobre o nosso país. E sobre o que nós podemos fazer para mudá-lo.
Giba Assis Brasil
março de 2004