No longínquo ano 2000, quando escrevia meu primeiro longa, “Houve uma vez dois verões”, eu e o Leo Henkin, diretor musical, pensávamos nas músicas que queríamos no filme, releituras feitas por bandas, cantores e cantoras do século 21, de clássicos da nossa adolescência. Gosto muito da trilha do filme (link nos comentários!), mas não conseguimos usar uma das nossas músicas preferidas: “The Weight” (O peso), do The Band. Os direitos eram muito caros, um terço do valor total do filme. Minha versão de “The Weight” adaptada ao litoral gaúcho ficou inédita. Sobrou no filme o nome da Carmem.
Agora descobri (num artigo de 2016) que a letra de The Weight - um poema surrealista de Robbie Robertson, principal compositor do The Band - foi inspirada em Luis Bunuel e Bergman. Aquilo que na minha versão virou a praia de Nazaré nasceu do Nazarin, do Bunuel. E a Carmem - nome do personagem da Julia Barth no filme - caminhando ao lado do diabo, vem de “O Sétimo Selo”, do Bergman. Fanny, de quem o peso deveria ser aliviado, era a dona de uma livraria.
Segue a minha versão inédita de “O Peso” - do tempo dos tranquilos com trema -, a letra original, o artigo de Seth Rogovoy sobre a música e um link para ouvi-la com o The Band e Staples Singers, no filme do Scorsese. Aumenta o som!
O Peso
Fui parar em Nazaré, sozinho, atrás de uma mulher.
Só preciso de um lugar pra dormir e pra tomar um café.
“Ei moço, por favor, sabe onde eu posso achar um hotel”?
Ele sorriu e me abanou e sumiu por trás de um carrosel.
(Chorus:)
Larga essa mochila. Não tem nada aí.
Larga essa mochila, vai logo pra Tramandaí.
Cheguei em Imbé, me sentei perto de um chafariz.
Vi a Carmem e o Demônio, num trailer comendo um xiz.
“Ei, Carmem, larga isso. Maionese pode te matar”.
Ela disse, “O cigarro também, nem por isso eu paro de fumar”
(Chorus:)
Larga essa mochila. Não tem nada aí.
Larga essa mochila, e vamos pra Tramandaí.
Capão Velho, Capão Novo, deixei vinte reais num flíper.
Só comi arroz com ovo e a mochila já não tem mais zíper.
“Ei, cara, dá um cigarro! Tu não viu a Roza por aí?”
“Eu não fumo e se encontrar, diz pra ela que eu morri”.
(Chorus:)
Larga essa mochila. Não tem nada aí.
Larga essa mochila, e vamos pra Tramandaí.
Um velho louco e seu cão fila me seguiram perto de Rondinha.
“Por que não volta pra tua vila? Não vê que essa calçada é minha?”
Eu disse, velho, fique tranqüilo, tem calçada pra todo mundo”.
Ele disse, “Engano seu, meu filho. Aqui não quero vagabundo!”
(Chorus:)
Larga essa mochila. Não tem nada aí.
Larga essa mochila, e volta pra Tramandaí.
Pinga e sonho no Pinhal, peguei carona pra Cidreira
Tive enjôo, passei mal, vomitei no pé da freira.
Chega de bobagem, ninguém quer você por aqui.
Roza é só uma miragem, já é hora de partir.
(Chorus:)
Larga essa mochila. Não tem nada aí.
Larga essa mochila, e volta pra Tramandaí.
The Weight
The Band
I pulled in to Nazareth
Was feeling ‘bout half past dead
I just need some place
Where I can lay my head
Hey, mister, can you tell me
Where a man might find a bed?
He just grinned and shook my hand
And no was all he said
Take a load off, Fanny
Take a load for free
Take a load off, Fanny
And (and, and) you put the load right on me
(You put the load right on me)
I picked up my bag
I went looking for a place to hide
When I saw Carmen and the Devil
Walking side by side
I said: Hey Carmen, come on
Let’s go downtown?
And she said: I gotta go
But my friend can stick around
And take a load off Fanny
Take a load for free
Take a load off Fanny
And (and, and) you put the load right on me
(You put the load right on me)
Go down, Miss Moses, there’s nothin’ you can say
It’s just ol’ Luke, and Luke’s waitin’ on the Judgement Day
Well, Luke, my friend, what about young Anna Lee?
He said: Do me a favor, son, won’t ya stay and keep Anna Lee company?
And take a load off, Fanny
Take a load for free
Take a load off, Fanny
And (and, and) you put the load right on me
(You put the load right on me)
Crazy Chester followed me, and he caught me in the fog
He said: I will fix your rack, if you’ll take Jack, my dog
I said: Wait a minute, Chester, you know I’m a peaceful man
He said: That’s okay, boy, won’t you feed him when you can
And take a load off, Fanny
Take a load for free
Take a load off, Fanny
And (and, and) you put the load right on me
(You put the load right on me)
Catch a Cannonball, now, to take me down the line
My bag is sinkin’ low and I do believe it’s time
To get back to Miss Fanny, you know she’s the only one
Who sent me here with her regards for everyone
Take a load off, Fanny
Take a load for free
Take a load off, Fanny
And (and, and) you put the load right on me
(You put the load right on me)
UMA DAS MAIORES CANÇÕES DE ROCK AND ROLL DE TODOS OS TEMPOS FOI INSPIRADA POR UMA LIVREIRA JUDIA.
Por Seth Rogovoy
Forward.com, 01/12/2016
Uma das músicas mais enigmáticas e, ao mesmo tempo, mais conhecidas do “The Band” é “The Weight”. Ela está no Top 50 das “500 Maiores Músicas de Todos os Tempos” da Rolling Stone; no Top 15 das “Melhores Músicas dos Anos 60” da Pitchfork; e uma das “500 Músicas que Moldaram o Rock and Roll”, de acordo com o Hall da Fama do Rock and Roll. Embora nunca tenha sido um single de sucesso para a banda, versões de Jackie DeShannon e Aretha Franklin obtiveram grandes vendas e veiculação em 1968 e 1969, respectivamente, e uma versão crossover de R&B foi lançada por Diana Ross & The Supremes com The Temptations em 1969. Mais de cem outras versões foram tocadas e gravadas desde então por nomes como Grateful Dead, Bruce Springsteen, Chambers Brothers, John Denver, Cassandra Wilson, Black Keys, Joe Cocker, Miranda Lambert, Weezer e Jimmy Fallon and the Muppets.
Parte do mistério da música - e do seu desconhecimento para muitos - está contido em seu título: o termo “the weight” (o peso) nunca aparece na música, cujo refrão é “Take a load off Fanny” (Tire uma carga da Fanny). A maioria dos ouvintes casuais provavelmente presume que essa frase seja o título da música; “Fanny’s load” (carga da Fanny) é presumivelmente “the weight” (o peso) ao qual o título se refere. O que exatamente isso significa, no entanto, é um mistério há muito tempo.
Isto é, até agora. Em uma entrevista com Marc Myers no Wall Street Journal, Robbie Robertson, o principal compositor do The Band, revela a panóplia de influências que levaram à criação da música, que apareceu no álbum de estreia do grupo em 1968, “Music from Big Pink”. Como ele explica em seu recente livro de memórias, “Testimony”, Robertson era um ávido fã de filmes de arte europeus no final da década de 1960, particularmente os de Luis Buñuel, cujas imagens surrealistas eram frequentemente usadas como comentários sobre religião, particularmente o catolicismo. “The Weight”, de Robertson, é carregado de imagens bíblicas; a música é uma jornada por um sul americano superficial que se assemelha a um terreno bíblico, povoado por personagens como Lucas, a Srta. Moisés e o Diabo.
A música começa com uma parada em um local notável: “Cheguei a Nazaré, me sentindo quase morto”. Poderia ser o local de nascimento de Jesus, mas Robertson diz que foi inspirado por seu violão acústico Martin D-28 de 1951. Certa noite, enquanto trabalhava na música, olhou dentro do violão e viu que ele havia sido feito em Nazaré, Pensilvânia, onde as guitarras Martin eram e ainda são fabricadas. Isso fez Robertson lembrar do filme “Nazarin”, de Buñuel, que “desbloqueou muita coisa na minha cabeça”, conta ele a Myers. “Eu simplesmente sabia que queria que os personagens descarregassem seus fardos no personagem principal da música em cada verso. O cara na minha música começa perguntando à primeira pessoa que vê em Nazaré sobre um lugar para passar a noite, um conceito bíblico.”
Outros versos da música, que Robertson escreveu enquanto morava em uma casa alugada em Woodstock, Nova York, em 1967, faziam referência a outras influências cinematográficas. A imagem de “Carmen e o Diabo caminhando lado a lado”, segundo Robertson, é inspirada em “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman, e na famosa partida de xadrez com a Morte.
Quanto à personagem-título, tal como ela é, Robertson confirma de uma vez por todas que ela é “Fanny”, e não “Annie”, como muitos frequentemente a interpretam erroneamente. (Experimente cantar “Take a load off Fanny” para si mesmo e verá como as duas convergem facilmente). De fato, houve uma Fanny na qual a melodia foi baseada. Como parte de sua autoeducação no cinema de vanguarda europeu, Robertson estudou os roteiros de Bergman e Buñuel, que encontrou na lendária Gotham Book Mart, na Rua 47 Oeste, em Manhattan - localizada em um bairro com o qual já estava familiarizado desde seus dias transportando diamantes de Toronto para Nova York em nome de um tio mafioso judeu. A livraria foi inaugurada originalmente no dia de Ano Novo de 1920 por Frances “Fanny” Steloff, que ainda a administrava quando Robertson frequentava a seção de filmes no final da década de 1960. Steloff acabou doando o prédio para a Fundação Amigos Americanos da Universidade Hebraica. Esses roteiros de filmes tiveram uma enorme influência em Robertson, tanto tematicamente quanto como compositor; deram-lhe permissão para compor músicas que incluíam jump cuts e fade-outs e usavam simbolismo surrealista de uma maneira particular que se tornou a marca registrada de Robertson, ao mesmo tempo em que abordavam questões como Deus, mortalidade e destino. Em suma, muito diferente das origens da banda, uma banda de bar majoritariamente canadense chamada Hawks, que acompanhava o astro do rockabilly Ronnie Hawkins em números de blues e R&B como “Who Do You Love?” e “Further on Up the Road”.
Quanto ao significado final da música, Robertson conta a Myers uma conversa com Roebuck “Pops” Staples em 1976, quando a banda regravou a música com os Staples Singers para inclusão no filme de despedida dirigido por Martin Scorsese, “The Last Waltz” (que celebrou seu 40º aniversário na semana passada, no Dia de Ação de Graças). Na sessão, Pops Staples perguntou: “Robbie, do que se trata essa música?” Robertson respondeu: “Pops, você sabe tão bem quanto eu.”
Como Robertson conta: “Ele olhou para mim, riu e disse: ‘Vai, Moisés’”. Acontece que a música escrita pelo ex-guitarrista de Bob Dylan era um hino dos direitos civis que, como muitos antes, conectava a difícil situação dos negros sul-americanos aos antigos escravos israelitas, ainda que disfarçada como uma estranha melodia country-rock. Nunca saberemos se o vocalista principal da música, o nativo do Arkansas Levon Helm, o único americano do grupo, tinha alguma noção disso - Helm morreu em 2012.
Seth Rogovoy, editor colaborador do Forward , é autor de Bob Dylan: Prophet Mystic Poet (Scribner) e Within You Without You: Listening to George Harrison (Oxford University Press).