40 coisas que eu aprendi em 40 anos de cinema
Anotações para fala no Inovacine, na Unisinos, para estudantes e profissionais do cinema. Porto Alegre, 21 de outubro de 2025.
#1 “Seja fiel a você mesmo.”
“to thine own self be true”
Ter algo a dizer, na sua voz, é o que importa.
Esta regra vale sobre todas as outras.
Eugene Vale e a convicção audaz: “Se aquilo em que você acredita firmemente contradiz todas as regras, esqueça as regras”.
#2 Cinema é trabalho de equipe.
Das sete artes, o cinema é a única que não se pode fazer sozinho. (Arquitetura?)
O mais autoral dos filmes - Cidadão Kane - produzido, dirigido, escrito e protagonizado por Orson Welles, seria inteiramente outro ou nem mesmo existiria sem o roteiro Herman J. Mankiewicz, sem a câmera e a fotografia de Gregg Toland, sem a montagem de Robert Wise, sem a música de Bernard Herrmann, sem os atores Joseph Cotten e Agnes Moorehead*.
O maior autor da história do cinema, Charles Chaplin - autor, roteirista, ator, compositor, músico, bailarino e produtor de seus filmes - não teria feito filme alguns sem suas equipes e parceiros de elenco.
Se puderem evitar, não escrevam “um filme de…” no cartaz e nos créditos, a não ser que o distribuidor decida que isso vai vender ingressos.
#3 Contamos histórias para saber quem somos.
Neurologista português Antonio Damásio:
Contar histórias, no sentido de registrar o que acontece na forma de mapas cerebrais, é provavelmente uma obsessão do cérebro e talvez tenha início relativamente cedo, no que concerne tanto ao processo evolutivo como à complexidade das estruturas neurais necessárias para criar narrativas. Contar histórias precede a linguagem, pois é, na verdade, uma condição para a linguagem”.
Romancista e médico alemão, Alfred Döblin, citado por Alberto Manguel em “A Cidade das palavras: as histórias que contamos para saber quem somos”:
“A maioria de nossas funções humanas é singular: não precisamos de ninguém para respirar, andar, comer ou dormir. Mas precisamos dos outros para falar, para que nos devolvam o que dissemos. A linguagem é um modo de amar.”
#4 “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. Gilberto Gil
Porrada e bomba ou good feelings?
O mercado, o algoritmo, só sabe quando vê, só vê o que já existe. Cabe aos artistas imaginar.
(vale o artigo 1)
“…lá há fogos novos, cores jamais vistas, mil fantasmas imponderáveis a quem é imperioso dar realidade.” G. Apollinaire, em defesa dos Impressionistas.
Rep
Gilberto Gil
O povo sabe o que quer
mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
O que não saboreia porque é só visão
E tão somente cores, a cor do veludo
Ludo, luz, brinquedo, ledo engano, tele
Teletecido à prova de tesoura
Que não corta, não costura, que não veste
Que resiste ao teste da pele, não rasga
Nunca sai da tela, nunca chega à sala
Que é pura fala, que é beleza pura
A pura privação de outros sentidos tais
Como o olfato, o tato e seus outros sabores
Não apenas cores, mas saliva e sal
Veludo em carne viva, nutritiva
Não apenas realidade virtual
Veludo humano, pano em carne viva
Menos realce, mais vida real
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saboreia
Porque morreria sem poder provar
Como provar a pilha com a ponta da língua
Receber o choque elétrico e saber
Poder matar a fome é pra quem come, é claro
Não apenas pra quem vê comer
Assim feito a criança pobre esfarrapada
Come feijoada que vê na TV
Essa criança quer o que não come
Quer o que não sabe, quer poder viver
Assim como viveu um Galileu, um Newton
E outros tantos muitos pais do amanhã
Esses que provam que a Terra é redonda
E a gravidade é a simples queda da maçã
Que dão ao povo os frutos da ciência
Sabores sem os quais a vida é vã
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe.
#5 Criar é mover-se do caos para ordem.
Anote em algum lugar, com letra legível, o que diz a musa.
Balzac dizia: “Crie com vinho, revise com café”.
E eu digo: revise antes de publicar! O verbo despublicar acaba de ser sublinhado em vermelho pelo meu word: despublicar não existe.
#6 ‘Escrever é reescrever’
“Para mim, e para a maior parte dos escritores que conheço, a escrita não é coisa que nos deixe em êxtase. Na verdade, a única maneira que encontrei para conseguir escrever seja o que for é escrever primeiras versões realmente de merda. A primeira versão é a versão da criança, aquela em que deixamos sair tudo para fora, e vamos para todo o lado, sabendo que ninguém vai ver o que estamos escrevendo e que podemos sempre dar-lhe forma mais tarde. Devemos deixar a criança dentro de nós tomar o controle e decidir quais as vozes e visões que vão vir à superfície e aparecer na página. Se um dos nossos personagens quer dizer “E então, Sr. Calça Cagada?”, nós deixamos que o faça. Ninguém mais vai ler essas palavras. Se a criança quiser aventurar-se por territórios sentimentais, lamúrias emocionais, deixemos que ela vá. Devemos pôr tudo no papel, porque pode haver algo de excepcional nessa meia dúzia de páginas alucinadas, algo a que não chegaríamos nunca pelos nossos meios racionais, de adultos. Pode haver algo na derradeira linha do derradeiro parágrafo da página seis que vai nos encantar, algo tão maravilhoso ou selvagem que nos mostra sobre o que estamos realmente escrevendo, ou em que direção devemos ir, mas não há como chegar lá se não tivermos passado primeiro pelas outras cinco páginas e meia.”
Anne Lamott
#7 Preconceito é burrice.
“Não sou inimigo dos gêneros”. JL Borges
Falar do que você não gosta é fácil, cômodo, seguro. Falar do que você gosta exige coragem.
#8 Quem se acha original apenas confessa sua ignorância.
O que fazemos, desde sempre, é contar as mesmas histórias, cada um a sua maneira.
Rapaz tímido e inteligente, com dificuldade de expressar seus sentimentos, se apaixona por uma garota espetacular e um pouco doida, fazem um monte de besteiras, mas no fim dá tudo certo e eles se beijam. (5 X)
As histórias nos ensinam sobre nós mesmos, sobre o mundo e sobre a linguagem, as diferentes e infinitas “poéticas da narratividade”. (Eco)
Tv.tropes
Dinheiro para queimar (tropo)
Krusty, o Palhaço , Os Simpsons:
“Ahh, não há nada melhor que um cigarro… a menos que seja um cigarro aceso com uma nota de 100 dólares!”
O filme brasileiro O Homem Que Copiava começa com o protagonista queimando dinheiro - In Medias Res, já que a história o mostra usando uma fotocopiadora para ganhar dinheiro e depois se arrependendo.
Coincidência Forjada e Psicopata de aluguel (tropos)
Na comédia brasileira Lisbela e o Prisioneiro, uma Coincidência Forjada configura a trama. O protagonista acaba tendo relações sexuais com uma mulher casada com um Psicopata de Aluguel. Ele escapa antes que o homem possa matá-lo, e nenhum dos dois consegue ver bem o rosto do outro. Meses depois, o assassino está prestes a ser atropelado por um touro perdido… e adivinha quem o salva? A situação se torna realmente engraçada quando o Psicopata de Aluguel decide que deve pagar o favor a esse homem que acabou de conhecer, matando um de seus inimigos - e o protagonista começa a insultar e zombar do próprio homem que está à sua frente.
Auto da Compadecida
69 tropos
https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Film/OAutoDaCompadecida
#9 Paulo José: “Se você não tem o fim, não tem história”.
O Grifo, para Alice: “Comece do começo. Vá até o fim. E então pare”.
#10 Tudo que escrevemos num roteiro deve ser visível ou audível.
Não há exceções a esta regra.
Novos Exemplos de Não-roteiro.
As veias saltam de sua testa.
O mal estar se instaura. O silêncio entre eles é pesado.
Sabrina cheira a axila da camisa e constata que ela está aprovada para mais um uso.
Beto levanta as sobrancelhas.
Guedes novamente nada responde.
Magda dá alguns passos, escuta a música que vem do quarto, e faz cara de “não acredito”.
Magda tenta disfarçar a expectativa perante o inevitável convite pra ser C.E.O.
Sabrina parece reagir normalmente àquilo, demonstrando bem menos perplexidade do que a amiga imaginava. Na verdade, ela está com o pensamento em outra coisa.
Não há sinal de equipamentos de proteção em sua indumentária.
O Delegado, chega em casa sem o diamante.
Começo de uma manhã normal em Brasília.
#11 O orçamento é a estética.
Realismo custa dinheiro. Você pode fazer um bom filme, sobre qualquer tema, com qualquer orçamento. Depende, pra começar, do roteiro.
#12 Plano sequência quase sempre é preguiça.
A decupagem e a montagem são forças poderosas do cinema. Não abra mão delas.
Um plano sequência pode ser valioso se for cuidadosamente planejado, ensaiado com muita antecedência. Na hora da edição, a chance de você se arrepender de ter feito um plano sequência é enorme.
Meu pedido aos assistentes de direção: não me deixem fazer plano sequência. E se eu insistir, seja firme. Não!
#13 Pequenas ideias, grande angular.
Maneirismos e piruetas formais costumam envelhecer mal.
(…) Umberto Eco: “…penso que será possível encontrar elementos de ruptura e de contestação em obras que, aparentemente, se prestam a um consumo fácil, e perceber que, ao contrário, certas obras que se mostram provocativas e ainda fazem o público pular na cadeira não contestam coisa nenhuma. (…) Hoje, fazer vanguarda talvez signifique atingir um vasto público e povoar seus sonhos.”
#14 Tudo deve ser feito para que o ator possa fazer bem o seu trabalho.
Dogma Domingos de Oliveira:
“Dentro do Set, O ATOR TEM A PRIORIDADE. NADA PODE SER FEITO QUE INCOMODE O ATOR, QUE LIMITE, QUE INIBA, QUE TIRE O ATOR DO SEU TEMPO. UM ATOR NÃO PODE ESPERAR PELA TECNICA, FIGURINO OU MAQUILAGEM. ESTA É UMA VERDADE PRIMARIA. O RESTO É GROSSERIA.”
Alguns dos maiores criadores da história da dramaturgia - Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Shakespeare, Moliere, Brecht, Chaplin - foram atores.
“Ao inventarem, ao pensarem geralmente suas obras junto com a encenação, eles prevêem os recursos técnicos necessários, como homens que conhecem seu ofício ou que o sentem intensamente.” Etienne Souriau.
#15 “Uma vez que o ator foi escolhido para o papel, o diretor já fez 90% do seu trabalho”. Alexander Mackendrick
É um exagero. Eu diria 80%. 80% do trabalho do diretor é escolher o elenco certo, 10% é escolher o roteiro certo, 10% é manter a equipe animada 5 semanas.
#16 Concentre-se na encomenda.
Autores que escrevem/pintam/filmam porque querem são uma moda bem recente. Quase toda a arte produzida pelo homem até o século XIX foi sob encomenda: Giotto, Cervantes, Shakespeare, Rembrandt, Velazquez, Michelangelo, Mozart, Aleijadinho, só trabalharam sob encomenda. O melhor cinema americano (1910-1960) foi todo feito sob encomenda, ninguém pensava estar fazendo arte, apenas cumpriam prazos e orçamentos.
#17 Kurt Vonnegut: “A principal função de um texto é manter o leitor lendo”.
A história - no texto - é o trilho que mantém o leitor lendo.
Entrevista concedida por Kurt Vonnegut Jr.
VONNEGUT: Todas as grandes linhas básicas de histórias são grandes brincadeiras nas quais as pessoas caem continuamente.
Pergunta: Pode dar um exemplo?
VONNEGUT: O romance gótico. (…) “Uma jovem arruma um emprego em uma casa velha e depois fica morrendo de medo lá dentro”.
Pergunta: Mais alguns?
VONNEGUT: Os outros não são tão engraçados de se descrever. Alguém entra em apuros e depois escapa. Alguém perde alguma coisa e a recupera. Alguém é enganado e se vinga. Cinderela. Alguém começa a andar para trás e a sua situação só piora cada vez mais. Duas pessoas se apaixonam e outras atrapalham. Uma pessoa virtuosa é falsamente acusada de um delito. Uma pessoa má é julgada virtuosa. Uma pessoa encara um desafio com bravura e tem sucesso ou não. Uma pessoa mente, uma pessoa rouba, uma pessoa mata. Uma pessoa pratica fornicação.
Pergunta: Me desculpe, mas esses são enredos muito antigos.
VONNEGUT: Eu lhe garanto que nenhum esquema de histórias modernas, mesmo sem enredo, dará a um leitor satisfação genuína, a menos que um destes enredos antigos seja introduzido em algum lugar. Não valorizo enredos como representações precisas da vida, mas como maneiras de manter o leitor lendo. Quando eu ensinava redação criativa, dizia aos meus alunos para fazer com que seus personagens quisessem algo logo, mesmo que fosse apenas um copo d’água. Até personagens paralisados pela falta de sentido da vida moderna têm que beber água de tempos em tempos. (…) Quando você exclui o enredo, quando exclui alguém que deseje alguma coisa, você exclui o leitor, o que é uma atitude mesquinha. Você também pode excluir o leitor não contando imediatamente onde a história se desenrola e quem são estas pessoas. E você pode fazê-lo dormir se não colocar os personagens em confronto uns com os outros. Estudantes gostam de dizer que não apresentam confrontos em seus textos porque as pessoas evitam confrontos na vida moderna. “A vida moderna é tão solitária…”. Isso é preguiça. É o trabalho do escritor apresentar confrontos, para que os personagens digam coisas surpreendentes e reveladoras, eduquem e divirtam a todos nós. Se um escritor não sabe ou não quer fazer isso, deveria retirar-se do negócio.”
“Os leitores devem saber o máximo possível sobre a história, o mais rapidamente possível. Dane-se o suspense!” K. Vonnegut
Robinson Crusoé. Título:
A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé, de York, Marinheiro: Que viveu vinte e oito anos, sozinho em uma ilha desabitada na costa da América, perto da foz do Grande Rio Orinoco; tendo sido lançado à costa por um naufrágio, onde todos os homens pereceram, exceto ele. Com um relato de como ele foi finalmente libertado de forma tão estranha por piratas. Escrito por ele mesmo. Londres, 1719
#18 Determine seus padrões como autor, eles são seu patrimônio.
Personagens que falam sozinhos ou escutam atrás da porta são, para mim, inaceitáveis, com raríssimas exceções. Clichês só são aceitáveis como piada. Piadas escatológicas - piadas de peido, arroto, cocô - são aceitáveis até os 3 anos e meio de idade.
#19 Explicações demoram um tempo horrível. Conte as aventuras primeiro”
“Eu poderia contar minhas aventuras… começando por hoje de manhã”, disse Alice um pouco timidamente, “mas nem adianta lembrar de ontem porque, ontem, eu era outra pessoa”.
“Explique tudo isso direitinho”, disse a Tartaruga Falsa.
“Não, não! Explicações demoram um tempo horrível. Conte as aventuras primeiro”, disse o Grifo num tom impaciente.
Lewis Carroll, “Alice no país das maravilhas”.
Explicações demoram um tempo horrível. Deixe as explicações para mais tarde, pede o Grifo. As aventuras, primeiro.
Jean-Claude Bernardet
No artigo “Os Argentinos Dão Um Banho Nos Brasileiros”:
“Tem-se constantemente a sensação de que, para passar de uma cena à outra, roteiristas e diretores precisam explicar que o personagem fechou a porta, trancou-a, chamou o elevador, entrou no elevador, saiu do prédio. Constantemente se tem a sensação de que qualquer ação, cometa o personagem um assassinato ou tome uma média com pão e manteiga, mil motivações psicológicas ou outras precisam ser expostas. Esse enrijecimento da narrativa cinematográfica não ocorre em filmes incompetentes, mas justamente em filmes inclusive elaborados com cuidado. A ponto de podermos falar hoje na existência de um ‘parnasianismo’ cinematográfico brasileiro.”
(Link aqui: https://revistadecinema.com.br/2025/07/bernardet-o-polemista-garantiu-na-revista-de-cinema-22-anos-atras-que-os-argentinos-dao-um-banho-nos-brasileiros/)
#20 “Trate as cenas como as festas: chegue tarde e saia cedo”. Billy Wilder.
“O roteirista muitas vezes perde tempo apresentando o personagem antes que comece a trama. Creio que é natural, porque o roteirista novato não conhece seus personagens e por isso inventa situações que lhe permitam explorar quem são. Todos os filmes de estudantes começam com alguém na cama”.
Steven Zaillian, em Roteiristas de Cinema.
Alguém não acordou hoje? “I woke up this morning” (Pesquisa no Google em mostrou, “aproximadamente 787.000 resultados” para “I woke up this morning”.) Pule esta parte, a não ser que você tenha acordado na forma de inseto.
David Mamet: “Jogue fora o primeiro rolo!”
#21 Parte da criação é criar o método para criar.
Cada roteirista cria seu próprio método de trabalho, que pode mudar a cada projeto.
“Não… Não precisa se estar nem feliz, nem aflito
Nem se refugiar em lugar mais bonito
Em busca da inspiração…”
O Poder da Criação, de Paulo Cesar Pinheiro e João Nogueira
Christina Kallas (“Na sala de roteiristas”, Zahar, 2016):\
“Uma coisa é certa - cada programa é diferente e cada roteirista tem uma maneira distinta de cria-lo ou colaborar em sua criação. Os roteiristas com quem conversei muitas vezes tiveram respostas muito diferentes para as mesmas questões.”
W. Somerset Maugham. Citado em Sérgio Rodrigues, “Escrever é humano”: “Existem três regras para escrever ficção. Infelizmente, ninguém sabe quais são elas.”
#22 Paradoxo do concurso: roteiros ruins podem parecer bons para quem poucas vezes (ou nunca) esteve num set tentando filmar uma cena.
Rubrica de um roteiro:
“Eles não percebem, mas estão se envolvendo emocionalmente.”
Roteiros cheios de literatura - desonestos com o filme que poderá nascer de suas palavras - podem comover jurados de concursos. Infelizmente, tenho que admitir, uma versão “romantizada” do roteiro pode ser útil, mas não esqueça que, um dia, se quiser fazer um filme bom, vai precisar de um roteiro de verdade.
#23 O que não conta a história não faz parte da história.
“Todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que não altera este todo”. Aristóteles.
Dashiel Hammet: “Concentre-se no essencial e corte fora todo o resto”.
Cardoso e Marinês no motel em HQC. Quanto custou a piada?
Vale o artigo 1
#24 Cada cena é um filme.
Cada cena, por menor que seja, tem começo, meio e fim, revela algo sobre os personagens e/ou faz avançar a história. Se ela não faz isso, deve ser eliminada.
“Cada cena deve ser, ao mesmo tempo, surpreendente e inevitável.”. Eugene Vale
#25 Dê ao leitor ao menos um personagem pelo qual ele pode simpatizar. Kurt Vonnegut.
Há muitos filmes em que eu torço pelo cometa.
#26 Quase todos os problemas de um filme podem ser resolvidos com um roteiro melhor. Richard Lester
Possível fazer um filme bom com um roteiro ruim?
Pode acontecer, mas é muito raro.
Fellini é uma exceção?
#27 Humor é uma forma avançada de filosofia.
Uma piada de Petrônio, em Satiricon, do século I, ano 60: “Ele é tão rico que, se quiser, toma leite de galinha”.
Uma piada de Groucho Marx, 1930: “Não frequento clubes que me aceitam como sócio”.
Uma piada de Billy Connoly, 1970: “Se Jesus era judeu, porque tem esse nome mexicano?”
Como uma máquina da academia faz você exercitar músculos que não sabia existirem, o humor é uma espécie de malhação para o cérebro, faz sua mente alcançar lugares pouco frequentados.
Italo Calvino:
“Podemos dizer uma coisa ao menos de duas maneiras: uma maneira como quem a diz quer dizer aquela coisa e somente ela; e uma maneira como queremos dizer, sim, aquela coisa, mas ao mesmo tempo recordar que o mundo é muito mais complicado, e vasto e contraditório. A ironia de Ariosto, o cômico de Shakespeare, o picaresco de Cervantes, o humor de Stern, a truanice de Lewis Carroll, de Edgar Lear, de Jarry, de Queneau, valem para mim na medida em que, por meio deles, alcançamos essa espécie de distanciamento do específico, de sentido da vastidão do todo”.
Italo Calvino, “Definições de território: o cômico”.
A primeira virtude de todo humorista: envolver na própria ironia também a si mesmo.
#28 “Paulo José: “O importante é que sejam amigos!”
Repórter - Já contratou amigos em vez de pessoas mais capacitadas para o trabalho?
Orson Welles -Frequentemente.
Repórter - E se arrependeu?
Orson Welles - Frequentemente.
Repórter - Voltaria a fazê-lo?
Orson Welles - Sim, sem dúvida. Não considero que a arte seja mais importante que a vida. Odeio a concepção romântica dos artistas que se colocam acima de todos, é a pior coisa a fazer. Sem dúvida a amizade está acima da minha arte.
Tina Fey: “Não trabalhe com ninguém que você não queira encontrar na máquina de café às duas da manhã”.
#29 Em filmagens, se puder, evite crianças, animais e líquidos.
Pelo óbvio: crianças tem coisa mais interessante a fazer do que repetir uma tomada por oito vezes, animais não costuma ler roteiros e líquidos molham tudo.
#30 Documentário: é aquele filme que o autor (ou produtor) informa que é um documentário.
Descreve fatos que o narrador afirma que aconteceram. E nós acreditamos nele.
O cinema de documentário já foi definido como aquele que “registra fatos que se desenvolveriam igualmente sem a presença da câmera”. Isso não existe.
É uma questão ética, não estética.
#31 W. H. Auden: “O prazer não infalível como guia crítico, mas é o menos falível”.
(“Pleasure is by no means an infallible critical guide, but is the least fallible”.
#32 Delacroix: “Trata-se de fazer com que o quadro seja mais interessante que a parede”.
Arte é concentração, a vida é a parede.
Romeu e Julieta era uma história conhecida, que se passava em muitas semanas. Shakespeare concentra a ação em 5 dias.
#33 Carlos Manga: Flash-back é coisa de comunista.
Nem sempre o passado esclarece ou justifica o presente.
David Mamet chama de “dramaturgia do patinho de borracha”.
Por que eles agem assim? Não tenho ideia!
#34 O conto não perde tempo.
Na Sicília, os contadores de histórias usam uma fórmula: “lu cuntu num metti tempu” (o conto não perde tempo), quando quer saltar passagens inteiras ou indicar um intervalo de meses ou de anos. A técnica da narrativa oral na tradição popular obedece a critérios de funcionalidade: negligencia os detalhes inúteis, mas insiste nas repetições, por exemplo quando a história apresenta uma série de obstáculos a superar. O prazer infantil de ouvir histórias reside igualmente na espera dessas repetições: situações, frases, fórmulas. Assim como na poesia e nas canções as rimas escandem o ritmo, nas narrativas em prosa há acontecimentos que rimam entre si. A eficácia narrativa da lenda de Carlos Magno está precisamente naquela sucessão de acontecimentos que se respondem uns aos outros como as rimas numa poesia.
Antiga lenda “tirada de um livro de magia”, narrada por Italo Calvino em “Seis propostas para o próximo milênio”, Companhia das Letras, São Paulo,1990. Tradução de Ivo Barroso.
“O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano, entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava os deveres do Império.
Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para sua câmara, recusando separar-se dele.
O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa.
A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo.
Turpino, para fugir àquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança.
Carlos Magno apaixonou-se então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens”
#35 Paul Newman: “Há filmes que fazemos porque amamos. Há filmes que fazemos porque estamos em outubro.”
“Alma é importante, mas o estômago está no poder”. G. Stolen
#36 O cérebro humano é obcecado por procedimentos.
A história começa quando um personagem deseja alguma coisa e o espectador se pergunta: ele vai conseguir? Como? E quando?
Por que torcemos para o bandido? Gotthold Lessing, a respeito de Ricardo III, de Shakespeare, explicando nosso interesse em relação aos personagens monstruosos.
“Todas as ações de Ricardo são atrozes, mas todas essas atrocidades se ligam a um objetivo. Ricardo tem um plano de conduta e sempre que nós vemos um plano nossa curiosidade é despertada. Nós esperamos de bom grado para ver se ele será bem sucedido, como e de que forma ele o será. Nós gostamos tanto de ver uma sequência de intenções que independentemente da moral do objetivo isso nos dá prazer.”
#37 “Há milumaestórias na mínima unha de estória.”
Cada história contém infinitas histórias.
“O viajante era um cara que ficava viajando de um lugar pra outro lugar, sem parar. Até que um dia ele começou a viajar de um lugar para dentro daquele mesmo lugar”
Jorge Mautner, “Negros Blues”.
https://youtu.be/JRTGzifHx84
Trechos de “Galáxias”, de Haroldo de Campos
e começo aqui
e meço aqui este começo
e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço
quando se vive sob a espécie da viagem
o que importa não é a viagem mas o começo da
por isso meço
(…)
por isso começo
pois a viagem é o começo
e volto e revolto
pois na volta recomeço
reconheço
remeço
um livro é o conteúdo do livro
e cada página de um livro é o conteúdo do livro
e cada linha de uma página
e cada palavra de uma linha é o conteúdo da palavra da linha da página do livro
Há milumaestórias na mínima unha de estória.
#38 “Cada homem leva em si a forma inteira da condição humana.”
A vida de qualquer um dá um filme.
Montaigne, Ensaios, livro I, capítulo 31 e livro II, capítulo 2.
“Gostaria que cada um escrevesse o que sabe e na medida em que o sabe. (…) Os outros formam o homem, eu relato a seu respeito e represento um em particular, bastante mal formado: eu mesmo. (…) Não posso fixar o meu objeto. Ele vai, confuso e titubeante, com uma ebriedade natural. Pego-o em qualquer lugar, como está, no instante em que com ele me divirto. Não descrevo o ser, descrevo a passagem. Ninguém tratou de um assunto do qual entendesse ou o qual conhecesse melhor do que faço. (…) Descrevo uma vida baixa e sem brilho: dá na mesma. É possível achar toda a filosofia moral numa vida popular e privada tanto quanto numa vida feita de matéria mais rica: cada homem leva em si a forma inteira da condição humana.”
#39 Dramaturgia é um baile de máscaras.
Ao escrever, você precisa ser todos os seus personagens.
“O dramaturgo é, por vontade própria, um inimigo da singularidade. Se as memórias e os diários íntimos levam o escritor a se considerar como fim, o teatro, por sua vez, o compete a afastar-se, esquecer-se de si mesmo, a transformar-se. Nada menos adequado às confidências do que essa arte, na qual ninguém se conhece senão através de uma centena de máscaras”.
Jean Paris, em “Shakespeare”, José Olympio editora, 1992, tradução de Barbara Heliodora.
#40 Ninguém é obrigado a ver o seu filme.
Ninguém, em lugar algum, em tempo algum, deve ser obrigado a ver filme algum.
Ver os nossos filmes é uma imensa consideração que o espectador ou a espectadora nos faz, gastando o tempo que ele ou ela tem, tempo que é raro e insubstituível, ouvindo e vendo, o que nós queremos mostrar e dizer. Ele ou ela poderiam estar lendo um bom livro, conversando com amigos, se divertindo com sua família, mas está sentado, vendo e ouvindo a nossa história.
E mais: quase sempre nós ainda pedimos que ele ou ela pague para usar seu tempo vendo e ouvindo o que nós queremos mostrar e dizer a eles.
Por que ele ou ela fariam isso? O que nós temos a oferecer a ele?
Para que servem as histórias?
As histórias existem, desde o surgimento da humanidade, para fazer duas coisas:
divertir e ensinar
Umberto Eco: “Que o leitor aprenda algo sobre o mundo ou algo sobre a linguagem, eis uma diferença que marca diferentes poéticas da narratividade, mas a questão não muda.”
Ensinar sobre o mundo, sobre nós mesmos, e sobre “as diferentes poéticas da narratividade”, é para isso que servem as histórias.
Divertir e ensinar
Do poeta romano Horácio, em sua Ars Poetica:
“O poema ensina ou delicia. Ou ambos, e este é o que vicia”.
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sou ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa
Jorge Furtado
Porto Alegre, 21 de outubro de 2025.
Bibliografia:
- VALE, Eugene. Tecnicas del Guion Para Cine y Television. Editorial Gedisa, Barcelona, Espanha, 1989.
- MACKENDRICK, Alexander. Sopbre fazer filmes. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2024.
- CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1995.
- MAMET, David. Sobre direção de cinema. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002.
- LUMET, Sidney. Fazendo filmes. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1998.
- ARISTÓTELES. Poética. Ars Poética Editora, São Paulo, 1993.
- SOURIAU, Étienne. As Duzentas Mil Situações Dramáticas. Editora Ática, São Paulo, 1993.
- ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Companhia de Letras, São Paulo, 1994.
- ECO, Umberto. Lector in Fábula. Coleção Narratologia, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976.
- MAMET, David. Os três usos da faca. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002.
- VONNEGUT, Kurt. Entrevista (in “Os Escritores, Vol. 2”), Companhia das Letras, São Paulo, 1989.
- CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. Companhia das Letras, São Paulo, 1990.
- QUENEAU, Raymond. Exercícios de Estilo. Tradução de Luiz Resende. Imago Editora, 1995, Rio de Janeiro.
- STEINER, George. A morte da tragédia. Editora Perspectiva, São Paulo, 2006.
- LODGE, David. A arte da ficção. L&PM Editores, Porto Alegre, 2009.
- DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
- AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura universal. Editora Perspectiva, 1992.
- BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Editora Globo, 2001.
- SHAKESPEARE, William. Teatro completo. Ediouro, 1992.
- PESSOA, Fernando. Obra Poética. Editora Nova Aguilar, 1997